Lira
Neto
Dona
Socorro chegou aqui em casa faz três semanas. Não lhe peçam firulas
gastronômicas ou ousadias culinárias. Ela não é de inventar na cozinha. Se não
é exatamente um Alex Atala, sabe preparar um arroz com feijão que minha mulher
adora, uma tapioca fininha de dar gosto, um ovo frito com gema meio dura, meio
mole, que é assim uma obra-prima.
Morando
há mais de 30 anos em São Paulo, a cabocla fortalezense vinda do bairro da
Serrinha felizmente não perdeu o sotaque carregado, o jeitão despachado, a
cearensíssima sem-cerimônia. "Tu num quer mais um tiquim de farofa?",
pergunta-me, à hora do almoço, com aquela prosódia característica que me remete
às origens suburbanas. "E a bixinha num vai cumê, não?", indaga, os
olhos por cima dos óculos, vendo minha filha com cara de pouco apetite.
"Tá de fastio, num é? Tadinha", lamenta. "Deve ser verme",
conclui.
Quando
fala, além da peculiar e quase comovente falta de noção, dos diminutivos sem
conta e da flexão deliciosamente imperfeita da segunda pessoa do singular, dona
Socorro engole também o "d" dos gerúndios, essa outra marca típica da
cearensidade. Com ela, não é "cozinhando"; mas "cozinhano".
Não é "temperando"; mas "temperano". Aqui em São Paulo,
onde os gerúndios são estendidos a perder da conta ("cozinhaaaannnnnndo",
"temperaaannnnndo"), isso vale como um afago aos ouvidos de um
cearense desterrado há quase uma década.
Com
a chegada de dona Socorro, comecei a fazer, por conta própria, um inventário
das palavras que andavam meio sumidinhas aqui de casa: "sereno" (para
definir o orvalho noturno), "arrochado", "abestado",
"nebrinando", "arrudiar", "chulipa",
"batoré", "avexado", "cuxia" (meio-fio),
"lascado", "pebado", "ispilicute" e
"assanhado" (no sentido de despenteado, entenda-se).
Minha
filha, nascida e criada em São Paulo, acha engraçado o jeito de dona Socorro
falar, muito embora, às vezes, não consiga compreender o que ela diz. Não só
por questões de vocabulário, mas também de pronúncia. "Dinheiro", por
exemplo, vira dim-êro. O "h" do dígrafo desaparece cearensemente em
algum desvão misterioso da fala e o segundo "i" vai para o espaço.
"Cozinha", por sua vez, soa como algo próximo a "cuzi-ã".
Talvez
por uma sábia lei do menor esforço, os "erres" finais dos verbos
também se evaporam. "Vou fechá a porta da cuzi-ã prumode num passá o chêro
de cumida pru restu da casa", avisa a previdente dona Socorro, fonte
obrigatória de qualquer pesquisador disposto a elaborar um atlas linguístico da
fala cearense. Aquele "prumode", então, é supimpa. Uma preciosidade.
Adoro.
O
mais curioso é que, apesar de ter chegado há tão pouco tempo para trabalhar
conosco, dona Socorro criou uma empatia imediata com todos aqui em casa. É como
se a conhecêssemos desde sempre. Há algo de verdadeiramente familiar nessa
certa ausência de modos, nessa maneira de falar ao mesmo tempo áspero e
dengoso, nesse jeito pouco cerimonioso e desabusado de ocupar espaços. Desde
que ela não esparrame na comida aquele tempero abominável chamado cominho,
ficará tudo bem, prevejo.
Pelo
menos, desde que chegamos em São Paulo, é a primeira vez que temos alguém na
cozinha que sente prazer, para sorte nossa, em usar e abusar do delicioso
coentro, coisa que os paulistas execram. Semana passada, quando eu trouxe do
supermercado um suculento rabo de boi, dona Socorro mostrou que seu forte é
mesmo a cozinha rústica nordestina, uma de minhas maiores saudades do Ceará.
Não é todo dia que se vê uma rabada com coentro como aquela, nesta cidade que
se orgulha de ser a capital gastronômica do Brasil.
A
fala e a comida de dona Socorro têm o mesmo sabor e o mesmo encanto simples de
coisas que nos remetem, aqui na Pauliceia, a uma outra fruição do tempo, a um
outro ritmo de vida: o ritmo do balanço de rede, do baião de Luiz Gonzaga, do
arrastar de chinelo no alpendre.
Dona
Socorro também é dona daquele peculiar e atávico senso de humor cearense, mesmo
quando verdadeiramente ela não quer nos fazer rir. Mãe do Rogério, zelador do
prédio, jura que o filho, quando nasceu, era até bonitinho. "Mas a gente
só via a cabeça do bixim, de tão grande que ela era", comenta,
sinceramente comovida, enquanto mexe o caldo no fogão.
Se
já demonstrou intimidade suficiente com temperos e panelas, dona Socorro ainda
não se entendeu bem foi com a maquininha de café espresso. Atrapalha-se toda
com minha engenhoca de estimação. Fica apavorada quando não consegue apertar os
botões certos.
Dia
desses, ao ver sair apenas água quente da máquina, desesperou-se de vez. Quando
minha mulher entrou na cozinha, percebeu-lhe o pânico. Indagada se havia
lembrado de colocar antes a cápsula de café no local apropriado, dona Socorro
fez cara de alívio. "Vixe, é mermo, muié!", exclamou e, de tão
contente, ato contínuo, sentou um tapão nas costas de Adriana, à guisa de
agradecimento.
O
tapão nas costas, penso eu, é uma das instituições mais legítimas e um dos
traços mais característicos da cultura do Ceará. A expansividade de Dona
Socorro me fez lembrar do garçom que, certa vez, em um restaurante distinto de
Fortaleza, atendeu-me também com um baita tapa no ombro, como demonstração de
cortesia e gentileza: "E aí, minha joia, vai cumê o quê?"
Já
avisei à minha mulher que, da próxima vez que dona Socorro se atrapalhar na
hora de fazer o café espresso, pode deixar que eu resolvo. Vou chegar de
repente na cozinha e exclamar, sorrindo, caprichando no meu melhor cearencês:
"Ah, uma jaula...!!!".
Texto
publicado originalmente no Diário do Nordeste, em 9 de julho de 2010.
Acesso
em 2011-02-21
Fantástico!!! A gente lê como se estivesse assistindo a tudo.
ResponderExcluir