A Estupidez Humana
Ruth
de Aquino
Colunista
de Época
raquino@edglobo.com.br
Estou longe, em Londres. A noite dos desesperados de Santa Maria provocou em mim um
sufocamento típico das testemunhas impotentes de um massacre estúpido.
Não foi um avião que caiu, não foi um maluco que
saiu atirando, não foi uma tormenta que destruiu casas, não foi uma bomba
terrorista que explodiu. Foi um conjunto de omissões e incompetências primárias,
de Quinto Mundo.
Segundos ou
minutos bastaram para asfixiar, queimar, envenenar e matar 200 e tantos jovens
num espaço de lazer. Eles eram ou poderiam ser nossos filhos. Saíram para
dançar, voltaram num caixão. Irmãos, namorados, amigos.
Há uma faixa
preta no braço de cada brasileiro. Há uma torcida emocionada pelos pais e mães
que se internaram em quartos de hospital para acompanhar o drama dos filhos em
UTI’s.
Nosso luto é
pela estupidez humana que transformou uma boate numa câmara de gás sem chance
de salvação para centenas de rapazes e moças. O assassinato coletivo na boate
Kiss ficará na história como uma das tragédias que poderiam ser evitadas se
houvesse uma coisa apenas: responsabilidade. Faltou responsabilidade. Do
prefeito. Dos donos da boate. Do Corpo de Bombeiros. Dos músicos. Dos
seguranças.
Santa Maria, rogai por nós, pecadores do Rio de
Janeiro, de São Paulo e de todas as capitais e cidades do Brasil. Em qualquer
canto deste país, há armadilhas engatilhadas contra a vida. Boates e casas
noturnas estão com alvará vencido, superlotam, não têm suficientes saídas de
emergência nem sinalização, os extintores são poucos, velhos, falsos ou não
funcionam, as janelas dos banheiros estão lacradas, os músicos usam substâncias
proibidas e baratinhas, o isolamento acústico é inflamável, os seguranças são
treinados para intimidar, e não para salvar, os bombeiros demoram e não têm
equipamento adequado.
Se uma boate
em chamas precisa ser esvaziada em quatro minutos, um minuto de fechamento da
única porta de saída para evitar “calote” equivale a um crime
escabroso. Como dizia Einstein: “Só duas coisas são infinitas, o Universo
e a estupidez humana, mas não estou seguro sobre o primeiro”. O país assiste
agora, envergonhado, a um jogo de empurra sem vencedores. Ninguém assume nem
responsabilidade parcial.
As leis
existem. Mas, por corrupção, ganância, descaso, ignorância e, principalmente,
por falta de fiscalização e punição, crianças caem de rodas-gigantes
defeituosas, grupos afundam em barcos superlotados, moradores de prédios
antigos são soterrados, bujões, fogos de artifício e bueiros explodem. Ninguém
vai preso, a culpa se dilui e a mídia esquece. Até a próxima “fatalidade
anunciada”.
Em alguns
países, como a Inglaterra, onde vivi sete anos, o risco é muito mais
controlado. Sim, houve o Grande Incêndio de 1666, parte do centro de Londres
foi dizimada em quatro dias de fogo, as casas são antigas com muita madeira – a
História explica a obsessão contra o fogo. Mas é bem mais que isso. No DNA dos
ingleses, existe a cultura da prevenção. Transmitida de geração a geração.
Pubs pequenos têm diversas saídas de emergência e vários
extintores, os letreiros de Fire Exit
são enormes e luminosos, o staff é
treinado. Há ensaios frequentes e sem aviso prévio em estabelecimentos públicos
e prédios particulares, chamados fire
drills. Alarmes soam. As simulações ensinam a salvar nossa vida e a dos
outros, com risco calculado. O país não quer celebrar heróis anônimos mortos em
incêndios.
O correspondente da Globo News em Londres, Sílio
Boccanera, esteve na British American
Tobacco Company para uma palestra internacional. Um dos diretores abriu
assim o encontro: “Bem-vindos. Algumas regras. Se tocar o alarme de incêndio,
levem a sério, porque não há ensaio programado para hoje. E é proibido fumar”.
Sílio quis instalar uma tomada em seu banheiro.
O eletricista se negou: “A Inglaterra proíbe tomada em banheiros. É muito
risco”. Todas as tomadas precisam ser aparentes, nenhuma abafada. Qualquer
apartamento alugado tem de ser vistoriado anualmente por técnicos de gás e
eletricidade. Por lei, o responsável é sempre o proprietário. As multas por
violar as Fire Regulations variam de
5 mil libras (R$ 17 mil) a dois anos de prisão. Sem ferir ou matar.
A obsessão com
segurança se revela em muitos aspectos da vida na Inglaterra. Ninguém senta em
corredores de teatros. Em dia de chuva, o funcionário do metrô pede por
alto-falante que todos andem com cautela na plataforma subterrânea. Motorista
que se aproxima demais de um ciclista ou um pedestre é reprovado no exame de
habilitação. Só se atravessa rua na faixa.
Essas histórias mostram nossa única saída. A
responsabilidade, pública e individual, com o espaço comum e com a vida de
todos.
Acesso
em 2013-02-12
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