Escutatória
Rubem
Alves
Sempre vejo anunciados cursos de oratória.
Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar...
Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas
acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto
Caeiro que... Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para
se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.
Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante
ter ouvidos para ouvir o que é dito”. É preciso também que haja silêncio dentro
da alma. Daí a dificuldade:
A gente não agüenta ouvir o que o outro diz
sem logo dar um palpite melhor... Sem misturar o que ele diz com aquilo que a
gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada
consideração...E precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a
dizer, que é muito melhor.
Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação
mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade. No fundo, somos os mais
bonitos...
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou
para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua
experiência com os índios: Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um
longo, longo silêncio.
Vejam a semelhança...Os pianistas, por
exemplo, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em
silêncio...Abrindo vazios de silêncio... Expulsando todas as idéias estranhas.
Todos em silêncio, à espera do pensamento
essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala,
novo silêncio.
Falar logo em seguida seria um grande
desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos...Pensamentos que ele
julgava essenciais.
São-me estranhos. É preciso tempo para
entender o que o outro falou. Se eu falar logo a seguir... São duas as
possibilidades. Primeira: Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não
ouvi o que você falou.
Enquanto você falava, eu pensava nas coisas
que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não
tivesse falado. Segunda: Ouvi o que você falou. Mas, isso que você falou como
novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem
preciso pensar sobre o que você falou.
Em ambos os casos, estou chamando o outro de
tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: Estou
ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou. E, assim vai a reunião.
Não basta o silêncio de fora. É preciso
silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio
dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.
Eu comecei a ouvir.
Fernando Pessoa conhecia a experiência...E,
se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras... No lugar onde
não há palavras.
A música acontece no silêncio. A alma é uma
catedral submersa.
No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a
boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos.
Aí, livres dos ruídos do falatório e dos
saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia...
Que de tão linda nos faz chorar.
Para mim, Deus é isto: A beleza que se ouve
no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: A beleza mora lá
também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num
contraponto.
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